Em Junho de 2003 explicitei as minhas reservas sobre o Congresso da Justiça que a então direcção da Ordem dos Advogados propunha, que constam no texto infra.
Hoje, ultrapassada toda a demagogia e a feira mediática que foi organizada em torno do congresso, é mais fácil compreender o que então escrevi:
Congresso da Justiça - uma oportunidade perdida
O Congresso da Justiça (CJ) que a Ordem dos Advogados se propõe levar a cabo, com a colaboração das organizações representativas dos restantes membros do mundo judiciário, tem vindo a ser apresentado como o pai e a mãe da resolução de todos os problemas judiciários.
A ideia de um congresso deste género não é nova, mas deve reconhecer-se ao Dr. José Miguel Júdice, ilustre Bastonário da Ordem dos Advogados, o crédito de ter pegado nela e de tentar levá-la à prática.
Seria uma reunião magna de todos os actores do mundo judiciário em que se procuraria encontrar uma plataforma básica de medidas ou contra-medidas que todos apoiariam.
Confessamos todavia o nosso cepticismo sobre os resultados que previsivelmente terá.
O anúncio do congresso despertou bastante interesse, mas rapidamente se verificou que ele obedece aos mesmos parâmetros dos variadíssimos congressos, seminários e encontros sobre a Justiça – que ao longo dos anos têm sido levados a cabo, sempre com resultados menores e por vezes insignificantes.
Não parece que haja um terreno propício a uma saudável troca de opiniões/conteúdos inovadores e criativos, conclusão a que se chega pelo exame dos temas propostos para debate, os temas oferecidos pelos conferencistas convidados, os timings propostos pela organização, as pessoas dos intervenientes previsíveis no congresso, os próprios moldes em que ele foi organizado e talvez até o momento político que vivemos.
Perfila-se no horizonte uma iniciativa em que as mesmas pessoas vão dizer as mesmas coisas aos mesmos auditórios, com as mesmas "private jokes" sem piada nenhuma de que toda a gente polidamente se ri, com as mesmas frases feitas, com os mesmos raciocínios sempre (des)razoavelmente quadrados - e no que toca aos Juízes, os mesmos protagonistas a repetirem o que dizem há 10 ou 15 anos como se fossem novidades descobertas na véspera, sem descortinarem o ridículo a que se expõem e o cansaço generalizado (por vezes a azia) a que o seu discurso dá lugar.
O CJ já começou alegadamente há meses; já se fizeram bastantes reuniões e conferências onde certamente mui doutas palavras e opiniões terão sido vertidas – mas ainda não há uma única publicação, uma única página na Internet, um único artigo de jornal generalista ou especializado onde constem essas comunicações e as propostas que terão originado.
O regulamento do congresso está agora em aprovação – a poucos meses do seu encerramento.
Tudo isso significa que a comunidade judiciária está “in albis” sobre os conteúdos que este CJ contempla – só quem está envolvido na sua organização sabe alguma coisa do que se vai passando.
Questões tão importantes como o segredo de justiça, a prisão preventiva, o financiamento da justiça, as formas de organização que ela deve assumir, as novas tecnologias judiciárias – correm o risco de ser superficialmente tratadas ou de não ser tratadas de todo.
O CJ foi "servido" pela Ordem dos Advogados aos outros actores judiciários com uma estratégia já aprovada, deixando a estes uma pequena (ou mesmo nenhuma) margem para manifestarem as suas posições.
Por outro lado, os Juízes não se sentem à vontade quando confrontados com uma espécie de mandato sem representação a ser exercido em seu nome pelo Bastonário da Ordem - tal mandato só faria sentido no quadro de uma grande sintonia de posições dos representantes dos Juízes e Advogados e das duas classes - que infelizmente estamos longe de ter alcançado.
As realizações conjuntas dos agentes da justiça devem ser colectivamente realizadas, a sua estratégia deve ser previamente acordada, o seu desenvolvimento no terreno deve ser séria e exaustivamente monitorizado por todos, para que finalmente os seus resultados reflictam os consensos básicos a que todos chegaram.
Preparado como está, o CJ não poderá ser muito mais do que o referendo das posições da Ordem dos Advogados feito pelo conjunto do milieu judiciário – uma forma populista de substituir o debate pela aprovação de algumas receitas mais ou menos pré-fabricadas que pouco adiantarão, embora possam ser interessantes e porventura “encham o olho” à comunicação social (coisa que o actual Bastonário sabe fazer melhor que ninguém).
Claro que para este congresso ter resultados eficazes era preciso ter sido partida muita pedra, era necessário ter estratégias comuns adoptadas, era preciso ter garantido plataformas mínimas de entendimento e de acção – nada disso foi feito e já não estamos a tempo de o fazer, pois esse tipo de trabalho não se faz à pressa, sob a pressão de “timings” pré-definidos e prazos a esgotarem-se.
Era aliás muito difícil estabelecer-se um ambiente minimamente aceitável em virtude das constantes diatribes anti-judiciais do Dr. Marinho Pinto, falando como representante da Ordem dos Advogados; em todo o caso, as diatribes do Dr. Marinho Pinto eram ultrapassáveis.
Inultrapassáveis são as restantes objecções, relativas à estratégia, conteúdos e “timings” do CJ.
É com desgosto que muitos Juízes vêem este congresso a perder-se – e com ele uma boa ocasião para nos entendermos, fazendo o ponto da situação e traçando metas e objectivos comuns – mas as objecções referidas justificam muitas reservas e um assumido “low profile” dos magistrados relativamente a ele.
Junho/2003